terça-feira, 24 de outubro de 2017

SEIS POEMAS CARIOCAS



              LAPA


Nesta casa antiga,
Sob estas volutas,
Como ri com as putas
Entre uma e outra briga.

Como virei copos
E extingui charutos,
Discuti com brutos,
Vaiei misantropos.

Urinei nas pias,
Vomitei nas portas,
Com passadas tortas
Vi nascer os dias.

Velha, velha casa,
Como ainda és a mesma.
(Não tens dentro a lesma
Que nos funda e abrasa.)


                                                                                     (A árvore seca, 2006)


BECO DOS BARBEIROS


Nossos pés e as folhas secas
Há tempos, tempos, te roçam
As pedras, quase as remoçam,
Polidas como carecas.

As folhas, como os calçados
Perdidos para o outro mundo
Dão-te um concerto profundo
De estalos, riscos, chiados.

Folhas de oitis, de mangueiras,
Botas, tamancos, coturnos,
Pés nus, ébrios pés noturnos,
Jornais lidos, amendoeiras,

Chinelos, heras, jaqueiras,
Gramíneas, notas fiscais,
Bilhetes de nunca mais,
Bengalas de áureas ponteiras,

Sapatos, rosas, cobranças,
Folhas dos homens, dos troncos,
Todos hirtos, ambos broncos,
Sapatilhas, pés de crianças,

Que ruído em rio, que rio
De eras sem fim, litania
Do abismo, na pista esguia
Do teu traçado sombrio

Que, à frente e atrás, é uma foz
Dando ao nada, é o dom das ruas,
Sob uns cem mil sóis, mil luas,
Ruidoso, fluente, feroz.



                                                                        (As desaparições, 2009)



CEMITÉRIO DAS POLACAS


Nos beliches sobre o oceano,
Nas camas de Lapa ou Mangue
Fizeram-se, corpo e sangue,
Algo horizontal e plano.

Sob o lustre, ao som do piano,
Quanto gesto ousado ou langue,
Que mudo medo da gangue
Que as trouxe, que asco inumano.

Mas ei-las, ainda deitadas
Nos seus leitos de cimento,
Seus barcos sem amuradas.

Doadoras do esquecimento,
Ei-las na paz olvidadas
De todos, menos do vento.



                                                         
                                                                        (As desaparições, 2009)



                  PASSEIO PÚBLICO
                        (DEVANEIO)



Como a vida cansa. Fosse eu já um busto
Num jardim bem sujo, entre espinheiros rombos.
Meu crânio lustroso sob um sol adusto
Ficaria branco com as fezes dos pombos.

Que em meu pedestal os bêbados, aos tombos,
Viessem se escorar e vomitar sem susto.
Bandas no coreto, entre marciais ribombos,
Nunca acordariam meu perfil vetusto.

Máscara sem alma, patinando ao vento,
Que nenhum passante sequer fitaria,
Tendo embaixo um nome que ninguém leria.

E se alguém o lesse, no fragor violento
Da hora do retorno, nem o guardaria,
Servo de um senhor que não se aplaca: o dia.


                                                                    
                                                                        (As desaparições, 2009)


           AVENIDA MEM DE SÁ


Dois filhotes de poodle na varanda
         Do casarão decrépito
Fitam o rio de metal e estrépito
         Que a hora comanda.

Seis da tarde. Os dois brinquedinhos brancos,
Entre as rendas da grade
Vetusta, cheiram com curiosidade
         O fumo dos arrancos.

São duas gotas límpidas de cera
         Da vela do existir
Sobrenadando, antes de submergir,
         O vão de onde o hoje é a beira.

Em breve, um dia, lá estará a sacada
         Vazia, ou de outras formas.
Assim se cumprem as sublimes normas
         Que não dão trégua ao nada.



                                                                        (As desaparições, 2009)

   CEMITÉRIO DOS PRETOS NOVOS
                         (GAMBOA)


O mar ficara atrás, defronte o nada.
Sem seu mundo, nem o outro, ei-los sepultos,
Ossos, cinzas, libertos dos insultos
Sob o asfalto, os assoalhos, a calçada.

Invisíveis, na alheia madrugada,
Levantam-se, reúnem-se, e seus vultos
Fitam a ruela livre de tumultos
E enxergam nela a cena insuspeitada.

Hienas, zebras e leões varam as casas,
Girafas e baobás nascem das telhas,
Os grous nos postes bicam suas asas,

E eles, ao fogo, com cauris e contas,
Dançam, estátuas brônzeas ou vermelhas,
Além da vida de ódios e de afrontas.

                                                                        (As desaparições, 2009)


                APELO

Quando, cidade, eu deixar-te,
Em que mundos pulsará
Esta falta que já está
Por aqui, por tanta parte?

Esta saudade sem termo
Para onde irá? Que desgraça
O exílio do que se passa
No teu corpo infante e enfermo.

Nunca mais, manhã bem cedo,
Caminhar na Rua Larga
Entre os caminhões de carga
E o abrir portas, que degredo.

Nunca mais o Bar do Joia,
O Gaúcho, o Paladino.
O que há depois do destino?
Sem mãos, que mão nos apoia?

Nunca mais os sebos reles
Da Feijó, da Tiradentes,
Nem as luzes descendentes
Sobre as mais diversas peles.

Nunca mais o Hotel Planalto,
O Triângulo das Sardinhas,
Velhas pedintes mesquinhas,
A corrida após o assalto.

O ouro vítreo das tulipas,
Os sinos nas rijas torres,
As querelas entre os porres,
O óleo sujo a fritar tripas.

Nem o Campo de Santana
Com estátuas, ébrios, putos,
Nem pombos nos cocurutos
De uns heróis que a brisa abana.

Nem a Rua do Ouvidor,
Rosário, Gonçalves Dias,
Quilométricas de dias,
De longas filas de dor.

Nem o Largo da Carioca
Pleno de povo e de lixo,
Papéis de jogo de bicho
Que um vento cego desloca.

Nem Lapa, nem Cruz Vermelha,
Gamboa, e os burros-sem-rabo
Rinchando, ou pipas num cabo
De luz, nem matos na telha.

Nem descer a Rio Branco,
Cinelândia, Serrador...
É possível tal horror,
Tal golpe à esquerda, no flanco?

Resta-me ser um fantasma,
Acolhe-me, pois, qual sombra,
Cidade que amo e me assombra,
Num tempo que o tempo plasma.

Deixa-me, espectro, cruzar-te,
Eterno, nesses lugares
Que são e foram meu lares,
Eu, teu cerne e tua parte.



                                                                  (As desaparições, 2009)

Nenhum comentário:

Postar um comentário